29 julho 2006

Ex-tensão universitária


Depois do trabalho, a presença no boteco era fundamental naquela sexta. Ele ia sozinho mesmo, pois lá sempre encontrava alguém com quem sentar e tomar sua cerveja e conversar um pouco, mesmo se fosse para ouvir as conversas sobre docentes, sobre os entorpecimentos ou as velhas piadas de sempre.
Chegou e encontrou a moça que mora no andar de cima, junto de dois desconhecidos. - Senta aqui com a gente. - Claro! Mas, antes de qualquer diálogo, já tinha em mente que somente tomaria uma dose naquela mesa. As conversas versaram sobre o palestrante gringo, sobre a fome e o sono que ela sentia e sobre a falta do que fazer naquela noite provinciana. - Até logo, vou tomar outra cerveja com aquele pessoal. - Até mais!
- E aí? Posso sentar com vocês? - Claro! Ali falava-se sobre música, sobre a festa que aconteceria em breve, sobre contas a pagar. Um gajo presente fazia questão de exaltar sua inclinação por algumas moças do recinto, porém seu olhar indicava outra direção. Ao mesmo tempo, o outro rapaz da mesa, destroçava uma embalagem de gomas com os dedos, por fim o atirando em sua namorada. Fim da garrafa, outra mesa.
- Oi! - E ae? - Oi, querido! - Esse aqui é um amigo nosso! - Se divertindo? - Estou apenas lambendo o mundo com os olhos. - Por que? Queria o que? - Ora, lamber com a língua! E a conversa girou em torno de moradia, gatos, lembranças e amizades. A moça-que-estava-triste-e-chapada estava o tempo todo em rusgas leves com o visitante-amigo-íntimo-do-amor-dela. Totalmente compreensível. Era melhor para o recém chegado fingir que não entendia os fatos. Fumou um cigarro com eles e foi embora.
- Se quer ser feliz, não analise!

25 julho 2006

Deslumbramento: uma proposta de roteiro


Conversas "intelectuais" em locais inesperados. Como Direitos Humanos com taxista, reflexões sobre a corporalidade no elevador, crítica ao capitalismo junto à vendedora de briquedos...

- Sabe que queimaram um ônibus aqui na cidade?
- É? Nossa, uma cidade tão pequena...
- Sabe de quem é a culpa? Dessas pessoas que deixam todos muito livres.
- Mas quem é que está livre hoje em dia? Não percebe que estamos todos capturados pela sociedade de controle, que o panóptico já se transformou em seminóptico, que os mecanismos sociais consistem na docilização das pessoas?
- Ã?
- Pois então, é isso mesmo, estamos cristalizados em estruturas que não permitem o refluxo. A sustentação de identidades rígidas trabalha a serviço da economia de massa e as pessoas perderam espaço para reflexões. O terrorismo do Estado se man...
- Escuta, onde você vai ficar mesmo?
* * * * * * * *
- Calor né?
- Nossa, nem fale, não dá nem pra pensar direito.
- Verdade, eu estava tentando resolver uma questão, preciso tomar uma decisão na minha vida.
- Deve ser algo realmente preocupante, pois você está com uma cara tão muxibinha...
- Não faço outra coisa senão chorar, acho que meu namorado não gosta mais de mim.
- Como você percebeu isso?
- Ah, antes ele era tão atencioso, olhava nos meus olhos, se preocupava com minha opinião, era mais caloroso... Agora parece que se eu não estivesse perto, ele nem perceberia. Outro dia até perguntei se não era hora de terminarmos e ele fez um escândalo, insinou que eu tinha outro, que eu era uma ingrata e que ele fez tanto por mim.
- Nossa, calma, não precisa chorar. Ou melhor, chora mesmo. Chora porque você está enfrentando uma situação de opressão de gênero. Você está sendo aviltada pelo sexismo que oprime as mulheres e as coloca em posição inferior aos homens. Esses homens querem a obtenção de maior lucro possível do outro, principalmente das mulheres! As relações de afeto estão permeadas pela ótica mercantilista e se não tomarmos cuidado nos subjetivaremos como meros produtos que consomem. Desde os anos setenta o movimento feminista vem discutindo as relações de gênero e borrando os limites dessa divisão binária.
- Mas...
- É isso mesmo, temos que questionar! As pessoas devem ser críticas e compreender que a naturalização não é natural, que o que entendemos por mundo é uma construção sócio-histórica.
- É que...
- Não, não me venha com respostas compensatórias. Essa coisa de dizer que mulher é compreensiva é um artifício de dominação dos corpos. É parte do biopoder! E...
- Ei, calma, não precisa se exaltar assim, afinal o problema é meu. Só estava comentando.
- De forma alguma! E os rizomas? ... Onde ficam os rizomas?
- Ai, ai...

Foucault e a história do cotidiano


Ele foi a um seminário acadêmico. Quatro comunicações. Uma palestra. Temas: sexualidade, família patriarcal, panóptico, sociedade de controle, amor e rock, controle social.
Havia amigos de trabalho, muitos estranhos, vontade de saber e desejo. Desejo que aflorava pelos póros. E uma necessidade de continência para a sociabilidade.
Pois que se apaixonou pela paixão de um pelo trabalho, pelos dentes pontiagudos de outro. Atrás de si um tipo forte e sem ossos. Sentia suas correntes de calor, sua presença, sua atenção que ora se manifestava.
Intervalo: De onde vem? Qual seu nome? E o seu? Onde está hospedado? Vim com uma amiga.
Mais rigor científico. Criação de roteiro à parte. E a presença palpitante do moreno.
Final: Você sabe onde há uma lan-house? Ali adiante! Que vai fazer agora? Vou ali no bar e vc? Eu também, vamos lá.
Na saída a tal amiga que já chegou o abraçando. Ela demarcou seu território, mas parecia que o afagado não correspondia à altura. Como sempre, o outro manteve a discrição. O visitante estava atento a todos os movimentos dele. No caminho até o bar, uma conhecida, outra conhecida, e o estrangeiro retardando sua "amiga" para esperar.
Não demorou pra ela perceber o movimento. O território cada vez era mais demarcado. E a marcação ficou cerrada. Ele já não mais olhava para o visitante. E percebeu que cada vez mais ela se irava com a atração de seu "amigo" pelo outro. Quase que discretamente, chamou sua atenção e o visitante tornou-se mais frio que mármore.
E a possibilidade tornou-se uma quimera.

On line... off line


Há um tempo atrás, li uma coluna no jornal que falava da efemeridade dos contatos contemporâneos. Danuza lamentava a perda da emoção em receber cartas e da falta de todo o ritual para a leitura de uma missiva. De certa forma, concordo com ela. Mas não tanto pela questão do aspecto físico da correspondência, mas do seu próprio conteúdo.
Na última semana, fiquei tão feliz por postar uma carta escrita de meu punho, que até me senti deslocado no tempo. Todo o processo me parecia atemporal: uma manhã de segunda-feira, música e tranqüilidade. Com uma paixão que se estendia para além de mim, o texto surgiu como se já tivesse sido rascunhado. E pronto, coloquei no envelope, e levei até o correio.
Gostaria que a resposta viesse pela mesma via. Mas nem sei se ela virá de outro modo. Nem sei se ainda estou naquele adress book, pois até então os contatos foram eletrônicos.
Porém intensos.
Ai, essa vida onde os caminhos parecem encurtar está ficando cada vez menos coletiva. E viva a ortopedia, pois minha coluna está em frangalhos.

24 julho 2006

Querência


É duro estar na querência.
De ontem a hoje, conversei com duas pessoas. Muito interessantes. Encontrei uma figura que só via no meu trabalho, e que na época nem podia olhar direito. Freqüentei uma cidade e a amaldiçoei com um canto antigo.
Tudo on-line.
Off-line? Apenas o desejo de pele. Não concretizado. Por isso a canção.

Imagina
Tom Jobim - Chico Buarque

Imagina
Imagina
Hoje à noite
A gente se perder

Imagina
Imagina
Hoje à noite
A lua se apagar

Quem já viu a lua cris?
Quando a lua começa a murchar
Lua cris
É preciso gritar e correr
Socorrer o luar

Meu amor
Abre a porta para a noite passar
E olha o sol da manhã
Olha a chuva
Olha a chuva, olha o sol
Olha o dia a lançar serpentinas
Serpentinas pelo céu
Sete fitas
Coloridas
Sete vias
Sete vidas
Avenidas para qualquer lugar
Imagina
Imagina

Sabe que o menino que passar debaixo do arco-íris vira moça, vira
A menina que cruzar de volta o arco-íris rapidinho volta a ser rapaz
A menina que passou no arco era
O menino que passou no arco
E vai virar menina
Imagina
Imagina